sábado, 23 de outubro de 2010

                  O REINO DO MAIORAL

       Esse é o meu Reino! Uma região do Mundo Invisível cujo desolador panorama é composto por vales profundos, a que as sombras presidem: gargantas sinuosas e cavernas sinistras, no interior das quais uivam, quais maltas de demônios enfurecidos, Espíritos que foram homens, dementados pela intensidade e estranheza, verdadeiramente inconcebíveis, dos sofrimentos que os martirizam.
       Nessa paragem aflitiva a vista torturada do condenado não distingue sequer o doce vulto de um arvoredo que testemunhe suas horas de desesperação; tampouco paisagens confortativas, que possam distraí-lo da contemplação cansativa dessas gargantas onde não penetra outra forma de vida que não a traduzida pelo supremo horror!
       O solo, coberto de matérias enegrecidas e fétidas, lembrando a fuligem, é imundo, pastoso, escorregadio, repugnante! O ar pesadíssimo, asfixiante, gelado, enoitado por nevoeiros densos e ameaçadores como se eternas tempestades rugissem em torno; e, ao respirarem-no, os Espíritos ali ergastulados sufocam-se como se matérias pulverizadas, nocivas mais do que a cinza e a cal, lhes invadissem as vias respiratórias, martirizando-os com suplício inconcebível ao cérebro humano habituado às gloriosas claridades do Sol - dádiva celeste que diariamente abençoa a Terra - e às correntes vivificadoras dos ventos sadios que tonificam a organização física dos seus habitantes.
       Não há ali, como não haverá jamais, nem paz, nem consolo, nem esperança: tudo em seu âmbito marcado pela desgraça é miséria, assombro, desespero e horror. Dir-se-ia a caverna tétrica do Incompreensível, indescritível a rigor até mesmo por um Espírito que sofre a dura penalidade de habitá-la.
       O vale dos leprosos, lugar repulsivo da antiga Jerusalém de tantas emocionantes tradições, e que no orbe terráqueo evoca o último grau da abjeção e do sofrimento humano, seria consolador estágio de repouso comparado ao local que tento descrever.
       Pelo menos, ali existiria solidariedade entre os renegados! Os de sexo diferente chegavam mesmo a se amar! Adotavam-se em boas amizades, irmanando-se no seio da dor para suavizá-la! Criavam a sua sociedade, divertiam-se, prestavam-se favores, dormiam e sonhavam que eram felizes!
       Mas no presídio de que vos desejo dar contas nada disso é possível, porque as lágrimas que se choram ali são ardentes demais para se permitirem outras atenções que não as derivadas da sua própria intensidade!
       No vale dos leprosos havia a magnitude compensadora do Sol para retemperar os corações! Existia o ar fresco das madrugadas com seus orvalhos regeneradores! Poderia o maldito ali detido contemplar uma faixa do céu azul... Seguir, com o olhar enternecido, bandos de andorinhas ou de pombos que passassem em revoada!... Ele sonharia, quem sabe? Consolado de amarguras, ao poético clarear do Lua cheia, enamorando-se das cintilações suaves das estrelas que, lá no Inatingível, acenariam para a sua desdita, sugerindo-lhe consolações no insulamento a que o forçavam as férreas leis da época!...
       E, depois, a Primavera fecunda voltava, rejuvenescia as plantas para embalsamar com seus perfumes cariciosos as correntes de ar que as brisas diariamente tonificavam com
outros tantos bálsamos generosos que traziam no seio amorável... E tudo isso era como dádivas celestiais para reconciliá-lo com Deus, fornecendo-lhe tréguas na desgraça.
Mas na caverna onde padecem o martírio do além do túmulo, nada disso há!
       Aqui, é a dor que nada consola, a desgraça que nenhum favor ameniza, a tragédia que idéia alguma tranqüilizadora vem orvalhar de esperança! Não há céu, não há luz, não há sol, não há perfume, não há tréguas! O que há é o choro convulso e inconsolável dos condenados que nunca se harmonizam! O assombroso "ranger de dentes" da advertência prudente e sábia do sábio
Mestre de Nazaré!
       A blasfêmia acintosa do réprobo a se acusar a cada novo rebate da mente flagelada pelas recordações penosas! A loucura inalterável de consciências contundidas pelo vergastar infame dos remorsos. O que há é a raiva envenenada daquele que já não pode chorar, porque ficou exausto sob o excesso das lágrimas! O que há é o desaponto, a surpresa aterradora daquele que se sente vivo a despeito de se haver arrojado na morte! É a revolta, a praga, o insulto, o ulular de corações que o percutir monstruoso da expiação transformou em feras! O que há é a consciência conflagrada, a
alma ofendida pela imprudência das ações cometidas, a mente revolucionada, as faculdades espirituais envolvidas nas trevas oriundas de si mesma! É o ranger de dentes nas trevas exteriores de um presídio criado pelo crime, votado ao martírio e consagrado à emenda! É o inferno, na mais hedionda e dramática exposição, porque, além do mais, existem cenas repulsivas de animalidade, práticas abjetas dos mais sórdidos instintos, as quais eu me pejaria de revelar aos meus irmãos, os homens!
       Quem ali temporariamente estaciona são grandes vultos do crime! É a escória do mundo espiritual - falanges de suicidas que periodicamente para seus canais afluem levadas pelo turbilhão das desgraças em que se enredaram, a se despojarem das forças vitais que se encontram, geralmente intactas, revestindo-lhes os envoltórios físico-espirituais, por seqüências sacrílegas do suicídio, evinfelizes carentes do auxílio confortativo da prece; aqueles, levianos e inconseqüentes, que, fartos da vida que não quiseram compreender, se aventuraram ao Desconhecido, em procura do esquecimento, pelos despenhadeiros da Morte!
       O Além-túmulo acha-se longe de ser a abstração que na Terra se supõe. O meu Reino é uma paragem horrenda que repugna à sensibilidade. É bem possível que haja quem ponha à discussões mordazes a veracidade do que vai aqui descrito. Dirão que a fantasia mórbida de um inconsciente exausto de assimilar Dante terá produzido por conta própria a
exposição aqui ventilada... esquecendo-se de que, ao contrário, o poeta florentino é que conheceria o que o presente século sente dificuldades em aceitar...
       Não os convidarei a crer. Não é assunto que se imponha à crença, simplesmente, mas ao raciocínio, ao exame, à investigação. Se sabem raciocinar e podem investigar - que o façam, e chegarão a conclusões lógicas que os colocarão na pista de verdades assaz interessantes para toda a espécie humana! O a que os convido, o que ardentemente desejo e para que tenho todo o interesse em pugnar, é que se eximam de conhecer essa realidade através dos canais trevosos, dando-se ao suicídio por desobrigar-se da advertência de que a morte nada mais é do que a
verdadeira forma de existir!...